Nordeste/Leste
A região que aqui identificamos como Leste-Nordeste do Brasil corresponde aos dez estados de interesse da Anaí e que são representados, no movimento indígena, pela Apoinme, é justamente a região de mais antiga presença colonial no país; aquela que já se encontrava efetivamente colonizada pelos portugueses ao se iniciar o século XIX, ou seja, antes da Independência; seja pela exploração açucareira ao longo de toda a Mata Atlântica em seu litoral desde meados do século XVI, seja pela penetração da pecuária no seu semiárido (a caatinga) já desde pelo menos o início do século XVII, seja, por fim, pela frente mineradora que alcançou o centro do atual estado de Minas Gerais já ao final daquele século. Os povos indígenas nessa região são, portanto, os que primeiro sofreram os impactos da empresa colonial em todos os seus aspectos, desde a escravização e o regime dos aldeamentos missionários ainda no período dito colonial, até as iniciativas de desconstituição de suas identidades e direitos indígenas que se seguiram à expulsão dos missionários jesuítas em 1756 e à extinção das “diretorias de índios” nas diversas províncias da região ao longo do século XIX e em especial após a Lei de Terras de 1850, um marco no esbulho final do que restava de Terras Indígenas formalmente reconhecidas então.
Esses processos têm sido revertidos ao longo dos últimos cem anos quando, após a criação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) em 1910, comunidades e povos indígenas dos antigos aldeamentos da região começam a se mobilizar em demanda do seu “reconhecimento” enquanto indígenas e consequente acesso a políticas públicas específicas. Podemos identificar que esse processo tenha seus marcos iniciais na década de 1920, com a implantação de um posto do SPI e a destinação de lotes próprios para famílias indígenas entre os Fulni-ô de Águas Belas, Pernambuco, e com a criação, pelo estado da Bahia, de uma “reserva” para indígenas no Sul do estado (a atual Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu), alguns deles os últimos bandos ainda autônomos em toda a região.
Desde então temos vivido um intenso processo de crescente afirmação étnica dos povos indígenas nessa região, algo totalmente inverso ao que boa parte do nosso sistema escolar ainda insiste em relatar, falsamente, como histórias de miscigenação e de progressivo “desaparecimento” de indígenas à medida em que esses se tornam mais envolvidos com a sociedade nacional abrangente.
Quando a Anaí foi criada em 1979 havia em toda essa região apenas 14 povos plenamente reconhecidos como indígenas pelo estado nacional – Os Maxakali e Xakriabá em Minas Gerais; Pataxó, Kiriri, Kaimbé e Tuxá na Bahia; Kariri-Xokó e Xukuru-Kariri em Alagoas; Fulni-ô, Pankararu, Xukuru, Atikum e Kambiwá em Pernambuco, e Potiguara na Paraíba -, todos eles “reconhecidos” ao longo das cinco décadas anteriores até ali; ao passo que povos de mais recente contato – Krenak em Minas Gerais e Pataxó Hãhâhãi na Bahia – haviam sido recentemente tidos como “extintos”, tendo suas Terras – a eles destinadas no próprio século XX – sido totalmente esbulhadas por processos de arrendamento e grilagem, e sua população “remanescente” forçadamente removida para outros territórios. Havia então não mais que 15 mil indígenas “reconhecidos” na região, vivendo em apenas 14 territórios minimamente reconhecíveis, embora todos eles fortemente invadidos.
A década de 1980, porém, marcada pelo processo de “redemocratização” do país e pela promulgação de uma nova Constituição em 1988, marcaria também um fortalecimento do processo – que já vinha ocorrendo a mais de cinco décadas – de afirmação étnica indígena em toda a região, potencializado cada vez mais, nas quase cinco décadas vividas desde então, pela consolidação dos direitos constitucionais indígenas, pelo fortalecimento das organizações indígenas politicamente atuantes no contexto nacional, pela formação de uma nova geração de lideranças indígenas com maior grau de escolarização e, por fim, pelo acesso cada vez maior do movimento e das vozes indígenas aos grandes contextos urbanos em que vive hoje a maior parte da população do país.
Com tudo isso temos hoje, na primeira metade da década de 2020, em toda essa região Leste-Nordeste do Brasil, cerca de cem diferentes etnias indígenas, vivendo em cerca de 250 territórios, com uma população de cerca de 300 mil indígenas!
É todo esse rico processo, ao mesmo tempo secular e muito atual, que a Anaí se propõe a testemunhar e registrar e, mais que isso, a se engajar e atuar como parceira e aliada dos povos indígenas em suas demandas e lutas por direitos.
Desde a adesão do Brasil à Convenção 169 da OIT em 2004, aos povos indígenas não é mais exigido um processo de “reconhecimento” formal pelo estado nacional. Entretanto, seu acesso a direitos e a políticas públicas segue sendo profundamente entravado pelas estruturas de poder econômico e político racistas e coloniais que ainda dominam o país.
Nessa página, a Anaí pretende documentar e tornar acessível o conhecimento sobre os povos indígenas da região. É um trabalho que precisará ser necessariamente intenso e contínuo, que será sempre incompleto, mas que tentaremos fazer com que possa ser cada vez mais abrangente e que possa contar, sempre, com todas as colaborações e parcerias possíveis.