Em maio de 2020, a pandemia da Covid-19 já se alastrava por todo o país, que assistia perplexo e atemorizado ao descaso das autoridades federais a respeito.
A essa altura, começavam a nos chegar as primeiras notícias da contaminação de indígenas em seus territórios na Bahia, a princípio, como seria de se esperar, naqueles mais próximos ou inseridos em áreas urbanas populosas, invadidos ou cortados por grandes vias de circulação.
De início, nos preocupamos em intensificar nosso apoio, que já existia, a iniciativas de vigilância e prevenção, a maioria delas de iniciativa dos próprios indígenas e suas organizações, como barreiras sanitárias, campanhas de esclarecimento e de produção e distribuição de equipamentos de proteção.
Mas, para isso, precisávamos de informações qualificadas sobre onde e como intervir com mais urgência e gravidade. Buscamos então melhores informações sobre o que ocorria nos territórios e fomos, assim, favoravelmente surpreendidos pela grande adesão dos indígenas, suas lideranças, suas/eus profissionais de saúde e suas organizações, destacadamente o Mupoíba (Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia), a esse nosso esforço de produção de informações qualificadas sobre o andamento do processo de contaminação nos diferentes territórios, as condições locais mais ou menos favoráveis à sua propagação ou contenção; enfim, as respostas que vinham sendo dadas a isso tudo pelos mais diversos agentes envolvidos, de autoridades sanitárias a educadores, pais e mães de famílias.
Decidimos então, em parceria com o Mupoíba, produzirmos boletins periódicos sobre a Covid-19 em Terras Indígenas na Bahia, o que fizemos regularmente, sempre as sextas-feiras, com lançamentos às 19 horas em nossas redes sociais, em vinte edições, de 22 de maio a 23 de outubro, período mais crítico desse processo.
À medida que os nossos boletins iam sendo lançados, número a número, percebíamos o interesse crescente neles, sobretudo nas próprias comunidades indígenas e entre os seus profissionais de saúde, cada vez mais engajados em colaborar conosco.
Os boletins não se limitaram a reproduzir os cada vez mais preocupantes números dos casos de contaminação, os dos óbitos que já ocorriam tragicamente, ou mesmo os dos casos curados, comunidade a comunidade; tampouco em apenas produzir alertas e divulgação de campanhas. Quisemos fornecer análises dos fatores que estariam favorecendo a propagação, destacadamente as circunstâncias de convivência forçada entre indígenas e segmentos mais vulneráveis representados por invasores dos seus territórios, pessoas em circulação intensa pelas vias que os cortam ou a população de centros urbanos próximos e adensados, tudo isso não raro terrivelmente negligenciado pelas autoridades, muitas delas ainda muito desinformadamente presas a ideias imaginárias de comunidades indígenas como núcleos sociais pequenos, distantes e isolados, e, portanto, hipoteticamente menos vulneráveis, o que as tornava, assim, vítimas de menor atenção por muitas dessas autoridades.
Tentamos assim cruzar dados como a demarcação ou não das Terras Indígenas ou o seu índice de segurança alimentar com os números da pandemia em cada caso local.
Mais que isso, quisemos encarnar os fatos em histórias reais e, para isso, aproveitando o grande interesse das comunidades, realizamos entrevistas com lideranças, profissionais de saúde e pessoas que haviam sido vítimas da Covid e a tinham superado.
Em um esforço para espandir nossas possibilidades de comunicação, passamos a também gravar e ilustrar sonoramente a leitura dos boletins, registrados em nosso canal de ‘podcasts’.
Muitos dos boletins tiveram também ‘lives’ de lançamento pela TV Pataxó, através do seu canal no ‘Youtube’, do que participaram sempre representantes da Anaí, líderes e profissionais indígenas de diferentes povos, sempre com audiências significativas.
Ao final, os boletins registram não apenas os números e fatos daquelas trágicas semanas, mas também a capacidade de organização e de resistência das comunidades indígenas, a dedicação e a competência de muitas de suas famílias, lideranças e profissionais diversos.
Impossível porém terminar este comentário sem mencionar a imensa dor causada pela perda de guerreiras e guerreiros valorosos em muitas das comunidades, ainda jovens muitos deles, mas principalmente de muitos de seus anciãos e anciãs, ou de “nossas bibliotecas vivas”, conforme sentidamente lamentado por muitos.
Num emblemático registro dessa trágica circunstância, agregamos aqui ao final dessa série de boletins o tocante depoimento, em breve artigo da nossa então Presidenta do Conselho Diretor da Anaí, Professora Jurema Machado, sobre o cacique Gerson Pataxó Hãhãhãi, líder com quem Jurema e muitos e muitas de nós convivemos longamente e a quem aprendemos a admirar, falecido a 15 de outubro daquele ano.
Infelizmente, houvesse sido mais generoso o destino, o nome de Gerson certamente estaria em outra série dos nossos boletins, a que registraria os sucessos indígenas nas eleições municipais daquele 2020, em que Gerson estaria decerto emplacando o seu recorde de eleição para um quinto mandato como representante do seu povo na Câmara Municipal de Pau Brasil.